Hoje eu lembrei que, há mais de um ano atrás, eu sofri uma tentativa de sequestro quase na rua da minha casa. O caminho da parada de ônibus para casa foi impossível de suportar sozinha por um tempo, depois eu me resignei de que não podia estar sempre acompanhada e voltei a andar sozinha este caminho que, apesar de ser percorrido em poucos minutos, parece nunca terminar. As marcas físicas sumiram rápido, o trauma psicológico me abandona aos poucos, mas a força que eu descobri em mim mesma eu espero que nunca me deixe.
Sempre fui feminista. Desde criança não aceitava os privilégios dados aos meninos só por serem meninos, mas permanecia calada. Na adolescência, me machucava profundamente ver a forma como as meninas competiam e se odiavam, mas eu permanecia calada. Calada estava, calada continuei sobre todas as agressões verbais e físicas que os homens se sentiam no direito de me dirigir na rua, desde os meus 11 anos de idade, por ser mulher. A empatia pelas vítimas de violência doméstica e sexual me arrebatou a ponto de direcionar a minha carreira, mas eu continuava calada. Calada, porque ninguém gosta da mulher que denuncia as violências que sofre e luta por seus direitos. Calada, porque é difícil lutar sozinha contra toda a cultura da sua sociedade. Sempre houveram inúmeras vozes que falavam em nome do patriarcado a me calar.
Mas aconteceu de eu estar vivendo a minha vida normalmente em um sábado às 11h10 da manhã, vestida nos meus jeans/camiseta habituais e um homem em uma moto decidir “me sequestrar”. Só pra quebrar (quase) todo o senso comum de que é estuprada sempre por um estranho marginal a mulher que se veste “provocativamente” e anda sozinha tarde da noite. Ainda me encaixo na categoria “desconhecido”, mas só cerca de 20% dos estupros são cometidos por agressores desconhecidos. No BO está registrado “lesão corporal e tentativa de sequestro”. Como eu sei que era tentativa de estupro? Eu nunca vou ter coragem de repetir o que ele me falou naquele dia pra justificar isso. E ainda houve quem me culpabilizasse, perguntando o que eu estava vestindo na hora ou me mandando tomar mais cuidado, dizendo que eu “tenho o costume de andar sem prestar atenção”. Isso me doeu mais que o ocorrido.
Depois que eu cheguei em casa e chorei todo o horror que eu tinha sentido, só uma coisa me veio à cabeça: ele vai atrás de outras. Acho que essa constatação foi mais aterrorizante ainda, saber que havia um estuprador à solta e que ele ia violentar outras mulheres. O alívio de ter escapado foi substituído pela dor quando, cerca de um mês depois, a polícia me procurou para tentar identificar um suspeito, que havia estuprado outra moça aqui por perto. Não dá pra se sentir aliviada quando tantas outras pessoas são violentadas todos os dias. Não consegui identificar, claro, eu não tinha conseguido ver o rosto dele. Os policiais disseram que me chamariam para depor. Até hoje não me chamaram. Eu acredito nos Direitos Humanos e não desejo nem um pouco que ele morra ou seja machucado e eu sei que nosso sistema penitenciário é uma piada e não recupera ninguém. Eu só queria que ele saísse das ruas e assim não machucasse mais ninguém.
Por pior que tenha sido o que passei, eu sou uma privilegiada. Privilegiada por ser feminista, conhecer meus direitos, e saber que eu fui uma vítima. Privilegiada por viver em um meio social ético, e ter tido suporte de família e de amigos na minha denúncia. Privilegiada por, por algum motivo que eu desconheço, ele ter desistido de mim. Reconhecendo meus privilégios, eu não pude mais ficar calada. Precisei falar por mim e por todas aquelas que sofrem todos os dias em uma sociedade que naturaliza a violência contra a mulher. Precisei expor tudo aquilo que eu pensava, mas tinha medo de falar. Eu já não tenho mais medo de falar, tenho medo de ser silenciada pelo ódio que permeia a nossa cultura. Tenho medo de não conseguir mudar a realidade hedionda de violência da vida de tantas outras mulheres que não possuem os mesmo privilégios que eu.
E por mais chata que eu possa parecer, eu sinceramente não me importo, porque falo da minha realidade, e se isso te incomoda, talvez seja hora de rever um pouco os seus conceitos. E por mais que você pense que eu não vou mudar nada com a minha atitude, a verdade é que muita gente já me procurou pra conversar porque’ via o que eu falava/postava e acreditava que eu era uma pessoa sensata’. Mesmo que eu não consiga nunca abrir os olhos de ninguém sobre o machismo, eu sei que eu ofereço apoio, incentivo e cuidado pros oprimidos, e só isso já vale todo o trabalho.
Não estarei totalmente livre de minhas amarras enquanto outras estiverem acorrentadas. Eu assumi a minha responsabilidade como ser humano, a de lutar por um mundo melhor para todos.
Já não posso mais me calar, eu tenho um propósito pelo qual lutar.
0 comentários:
Postar um comentário
Com amor de Jó,