Por Mais Mecânicas

Isso não é coisa de menina, meu bem. Deixe pra lá. Eram sempre as mesmas palavras, ou algumas variações delas. O que pouco mudava era o tom de voz zombeteiro e arrogante que deixava transparecer quase sempre uma despreocupação fingida. Também não mudava o jeito como essas palavras cortavam-lhe o peito, como uma flecha atravessa o ar, com uma facilidade inacreditável. À medida que o tempo passava, elas foram criando um lugar em sua vida, aninhando-se entre um sonho e outro como um obstáculo que estaria sempre presente e com o qual teria que aprender a conviver caso decidisse por continuar na profissão.

Este tipo de pensamento das pessoas era quase tão irrefreável quanto a lembrança que a invadia ao ouvir algo assim. A imagem de seu pai, claro, do alto de seus cabelos grisalhos e olhar severo, falando graciosamente por cima do ombro enquanto mexia nos motores. O cheiro de graxa e óleo queimado, o barulho estridente das ferramentas e a sensação de estar em casa completavam o quadro que ela sempre idealizava de uma vida perfeita. Porém, ali pairavam essas benditas palavras a surrar-lhe os ouvidos. Como se fossem o preço a pagar. Desde que descobriu a paixão pelos automóveis, viu-se obrigada a lidar com as mais variadas expressões com que se deparava na oficina. Boquiabertos, os clientes perguntavam se seria ela a cuidar de seus carros e exasperavam-se ao perceber que era mulher o mecânico tão competente de que tanto ouviram falar. Sempre havia sido assim.

Uma mulher!

Uma onda de sensações a invadia. Não era algo que a fazia se sentir propriamente confortável, mas não podia deixar de admitir que também sentia um certo prazer. Apesar de estar cansada disso, de aquelas palavras e olhares machucarem uma parte dela, não podia evitar pensar em como era bom provocá-los.

Ora, todo mundo quer se destacar. Ser bom em algo e ser diferente por isso. Ser desafiador. Acreditava ser isso o que as mulheres tentavam fazer hoje em dia, mesmo achando não ser o melhor caminho para fazê-las provar seu valor. Via diariamente que muitas mulheres optavam por deixar de lado o que sempre lhes fora “reservado”, optavam por uma maternidade tardia ou por não se casarem, para seguir com os estudos e correr atrás do reconhecimento que tanto desejavam. Era perfeitamente claro para ela que homens e mulheres, novos ou velhos, todos têm características que são só suas, e caberia a cada um explorá-las. Mas ao que parecia nem todos viam isso. Estava cônscia do quanto parecia estranho aos olhos de um homem o fato de uma mulher possuir algum talento para algo tão... Masculino. Perfeitamente compreensível.

Apesar de atualmente o discurso ser totalmente voltado para uma sociedade em que todos estejam em equilíbrio de direitos, na prática o individualismo ainda impera. Cotidianamente, mesmo dentro da oficina, ela conseguia sentir o quanto a igualdade é algo de certa forma temida pelas pessoas: alguns gastam absolutamente todo tempo e esforço para distinguir-se dos demais. Desigualar-se da massa. Percebeu que as mulheres eram vistas dessa maneira, buscando maior espaço e poder, afinal a integração da mulher no mercado de trabalho e o crescimento de seu papel na sociedade abalaram a todos. É preciso tempo para que mudanças sejam mais bem aceitas, para que as pessoas possam se adaptar. Porém, sendo a única mecânica de sua pequena cidade, e presenciando de perto essa mudança sabia que o verdadeiro intuito de uma mulher não é apenas se diferenciar de quem quer que seja. Pelo menos não era o dela.

Será que as pessoas não enxergavam? Tudo é uma questão de talento, aptidão e esforço! Ela via naqueles carros o que acreditava uma presidente também ver em seu gabinete: uma oportunidade de usar suas características para fazer o que gosta, o que sabe. Não era apenas por destaque pessoal, ou por provar que pode fazer o mesmo que um homem, mas por produzir com seu trabalho e vê-lo dar frutos graças a um dom seu. Ela poderia sim, fazer qualquer outra coisa. Ter filhos e cuidar da casa, trabalhar em um escritório, ser médica, arquiteta, garçonete. Mas era com carros que sabia mexer e com o que era feliz fazendo.

Os clientes, tão alheios àquela felicidade íntima, não conseguiam esconder a preocupação ao deixarem seus bebês em mãos femininas. Mas - a cada dia ela percebia e sentia o peito inflar como um balão - também havia em sua expressão algo como admiração. Se não era admiração, era respeito, ainda que tímido. O mundo cresceu, e aceitar as mulheres nas mais variadas áreas antes destinadas apenas a eles, é uma prova de que as pessoas cresceram junto. Tinham que crescer. Porém, como uma criança assustada, temiam esse avanço, sempre achando que essa luta por igualdade por parte delas por vezes assumia um sentido de inversão de papeis, como se merecessem um respeito maior por estarem se atrevendo.

Aí não seria igualdade.

Algumas vezes esse medo vira preconceito, discriminação, e os problemas ficam maiores. Ai como mexer com gente é complicado! Por isso prefere máquinas. Peças e ferramentas são mais maleáveis...

Cada dia em meio aos carros, vendo como amava o que fazia e lamentando por aquelas que têm medo de assumir essa liberdade, aprendia que o mundo ainda precisaria de muitas outras mecânicas. Para ser realmente bom em algo é necessário estudo e dedicação, mas não é preciso um curso para aprender a se impor no convívio social de modo a obter mais respeito. A maneira como trabalhava era o que a caracterizava e dar o melhor de si era contribuir com o crescimento e aproveitamento da própria sociedade.

Como católica que era, acreditava que a mulher fora proveniente de uma costela retirada do homem. Uma costela fica no meio. Não na cabeça e nem nos membros inferiores, no meio do corpo humano. No meio, igual.

Isto não é coisa de menina, meu bem. Deixe pra lá. É preciso acreditar e trabalhar para que os povos encontrem seu próprio equilíbrio de direitos e obrigações, não havendo distinções por gênero ou qualquer outra coisa. Só assim palavras e frases como estas serão extintas do nosso meio ao ponto de provocarem expressões surpresas e olhares desaprovadores ao serem pronunciadas, em qualquer ambiente profissional ou familiar.


Texto escrito por Carla Letícia Pereira Oliveira (Bethel #03 Barreiras/BA)
Texto vencedor do 7º Prêmio Construindo Igualdade de Gênero (CNPq) - Categoria Estudantes de Ensino Médio.

3 comentários:

  1. Nossa, que surpresa MARAVILHOSA o texto da irmã Carla Letícia no Blog Nacional das Filhas de Jó brasileiras, ainda mais porque fui eu que tratei de "espalhá-lo" em larga escala...rs

    Fiquei muito orgulhosa pelo texto, pela coragem de Carla ter escrito quando a escola estava em greve d@s servidores(as) - sem orientação docente - e de ter conquistado um prêmio importante no sentido de consciências esclarecidas em relação à necessidade de lutar por igualdade entre os gêneros.

    PARABÉNS!!!

    Paula Vielmo
    Bethel 03 - Barreiras/BA

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  2. Ótimo texto, realmente nos faz refletir. Precisamos de mais mulheres com essa coragem de se fazer ouvir, parabéns.

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  3. Irmãs!
    Obrigada pela publicação do meu texto, e pelo apoio sempre!!
    Beijoooos pra todas com amor de Jó :),
    Carla Letícia P Oliveira

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Com amor de Jó,